A droga se faz amiga, mas ela quer sua vida

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sexta-feira, 19 de agosto de 2011

TRATAMENTO OBRIGATÓRIO DE DROGAS— DE FATO UMA VIOLAÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS?

Um dos princípios não declarados, mas fundamentais, da filosofia da redução de danos é que submeter o vício em drogas a tratamento deve ser sempre uma escolha da parte do viciado. Em outras palavras, nenhuma pessoa deve ser forçada ao tratamento do vício em drogas contra a sua vontade, e, na medida em que o viciado ainda não toma a escolha de se submeter ao tratamento, o estado deve fornecer instalações para que ele possa alcançar o mais alto padrão de saúde, levando em conta o fato do seu vício. Como afirmado pelo Centro Canadense de Abuso de Substâncias:


As estratégias de tratamento obrigatório são contrárias às...abordagens de redução de danos. A redução de danos é fundada na noção de oferecer aos participantes escolhas e opções para o seu tratamento, enquanto reconhece que muitos indivíduos com problemas de abuso de substâncias podem não estar dispostos a parar de usar drogas. Em tais casos, é importante “encontrá-los onde estão” a fim de gradualmente reduzir os comportamentos prejudiciais e de alto risco...


Forçar os indivíduos a se submeter a tratamento para abuso de substâncias pode ser visto como uma violação às suas liberdades civis.


Além disso, o direito ao mais alto padrão de saúde alcançável inclui o direito de não receber tratamento médico involuntário de qualquer espécie. O Artigo 12 do ICESR foi o assunto de um Comentário Geral da CESCR que declara:


O direto à saúde não deve ser entendido como um direito a ser saudável. O direito à saúde contém tanto liberdades e direitos. As liberdades incluem o direito de se controlar a saúde e o corpo, incluindo a liberdade sexual e reprodutiva, e o direito de ser livre de interferências, tais como o direito de ser livre de tortura, de tratamento médico não consensual e de experimentação. Por contraste, os direitos incluem o direito a um sistema de proteção da saúde que forneça igualdade de oportunidades para que as pessoas gozem do mais alto padrão de saúde alcançável.


Há pouca elaboração sobre o direito de ser livre de tratamento involuntário, e o conceito pode ser tão óbvio a ponto de não precisar de explicações mais aprofundadas. Certamente, tratamento “médico” involuntário tem sido a causa de uma ladainha sobre os abusos dos direitos humanos no mundo, incluindo encarceramento para “doenças mentais” na União Soviética e esterilização forçada de pessoas com doenças mentais na Suécia. As liberdades incluem o direito de se controlar a saúde, incluindo o direito de ser livre de tratamento médico não consensual e de experimentação. Os direitos incluem o direito a um sistema de proteção à saúde (p.e. assistência à saúde e os determinantes subjacentes da saúde) que forneça igualdade de oportunidades para que as pessoas gozem do mais alto padrão de saúde alcançável.


Outras organizações têm também argumentado que, se imposto, o tratamento para o vício em drogas é uma violação aos direitos humanos. A Fundação Beckley, por exemplo, inclui o “tratamento coercivo de drogas” entre a ladainha dos abusos dos direitos humanos que acontece dentro do contexto dos esforços contra as drogas. Eles declaram:


Em muitos países, as pessoas que usam drogas podem passar por “tratamento” e “reabilitação” forçados. Ao invés de ser desencorajado, tal tratamento obrigatório é especificamente permitido na Convenção Única de Narcóticos de 1961...A lei da China, por exemplo, dita que “os usuários de drogas devem ser reabilitados.” Aqueles que são presos por posse e uso de drogas devem ser enviados aos centros de desintoxicação forçada sem qualquer julgamento ou outro processo legal semelhante...Por toda a sua “guerra contra as drogas” de 2003, o governo da Tailândia tomou uma variedade de passos coercivos para forçar as pessoas a se inscrever em programas de tratamento de drogas. Inicialmente, o governo tailandês obrigava que todos os usuários de drogas comparecessem a tratamento de drogas. Aqueles que não se “voluntariassem” ao tratamento durante os primeiros poucos meses da guerra contra as drogas estavam sujeitos à prisão e a tratamento compulsório, e eram colocados nas listas negras que eram amplamente publicadas por toda a comunidade local e compartilhadas com a polícia local.


Enquanto as práticas na China e na Tailândia são, de fato, violações aos direitos humanos, é apresentado que a questão não é o tratamento obrigatório, mas a falta do devido processo legal, assim como as condições de detenção que violam as normas dos direitos humanos.


Muitos países com procedimentos de justiça criminal muito mais em conformidade com os padrões internacionais dos direitos humanos do que a China ou a Tailândia implementam algum nível de coerção seguindo os procedimentos que aderem aos padrões dos direitos humanos para assegurar que os viciados em drogas se submetam a tratamento. Em especial, vários países usam procedimentos especializados para lidar com transgressores de drogas que não são violentos, incluindo o que são geralmente chamados de “tribunais para dependentes químicos.”De acordo com a UNODC, eles estão em operação na Austrália, Nova Zelândia, Barbados, Bermuda, Brasil, Canadá, Ilhas Caimã, Chile, Jamaica, Trinidade e Tobago, Estados Unidos, Noruega, Escócia e Irlanda.


Embora os tribunais para dependentes químicos variem consideravelmente de jurisdição para jurisdição, o modelo geral é o mesmo; os transgressores de drogas que não são violentos (aqueles considerados culpados por simples abuso ou posse de drogas, em oposição ao tráfico) são encaminhados a tribunais especializados que geralmente fornecem ao transgressor a escolha de se submeter a tratamento ou de encarceramento. O transgressor se submete a tratamento enquanto é supervisionado de perto pelo tribunal de drogas, e, geralmente, mais especificamente por equipes multidisciplinares que fornecem ao transgressor assistência em outras áreas. A conclusão bem-sucedida do tratamento leva à suspensão ou indeferimento do processo penal.


Alguns praticantes e acadêmicos discordam da eficácia da abordagem dos tribunais para dependentes químicos. Entretanto, os países onde essa abordagem existe concordam que é uma ferramenta útil para encaminhar os viciados em drogas ao tratamento, e a abordagem parece estar em crescimento internacionalmente. O Departamento de Justiça dos Estados Unidos concluiu que os tribunais para dependentes químicos rapidamente identificam os transgressores usuários de substâncias e os colocam sob monitoramento judicial contínuo e sob supervisão comunitária, juntamente com serviços de tratamento eficientes e de longo prazo...Pesquisas verificam que nenhuma outra intervenção judicial é capaz de alcançar os mesmos resultados produzidos pelos tribunais para dependentes químicos...De acordo com mais de uma década de pesquisas, os tribunais para dependentes químicos melhoram significativamente os resultados do tratamento de abuso de substâncias, reduzem substancialmente a criminalidade, e consegue melhor custo-benefício do que qualquer outra estratégia de justiça.


Um estudo conduzido pela Controladoria Geral dos Estados Unidos revelou “um nível mais baixo de reincidência para pessoas que se submeteram a tratamento através da supervisão dos tribunais para dependentes químicos.” Além disso, a INCB defende o uso de tribunais para dependentes químicos especializados:


O Painel nota, por exemplo, o impacto positivo dos “tribunais de tratamento de drogas,” como tribunais especiais para transgressores de drogas, que têm sido estabelecidos em um pequeno, porém crescente, número de países onde, a propósito, transgressores que apresentam baixo nível de violência podem receber assistência empregando uma abordagem multidisciplinar. O Painel vê potencial nesses tribunais que contribuem mais para lidar com o indivíduo subjacente, segurança pública, saúde pública e problemas comunitários de crimes e violência relacionados às drogas.


Outros países têm abordagens comparáveis, com metas semelhantes aos tribunais para dependentes químicos, buscando promover o tratamento e reabilitação. No Reino Unido, os tribunais podem emitir ordens para a reabilitação de drogas, requerendo tratamento e testes de drogas regulares sob a supervisão do serviço de liberdade vigiada. Em Portugal, as pessoas apreendidas com posse de uma pequena quantidade de drogas - não acima do limite para se supor legalmente que elas estejam cometendo tráfico - são trazidas diante das Comissões para a Dissuasão da Toxicodependência. Essas comissões são constituídas por pessoas e profissionais legais com experiência médica, psicológica, ou farmacológica, que fazem uma avaliação sobre se a pessoa é viciada em drogas e, em caso positivo, encaminham-na a tratamento. As Comissões para a Dissuasão têm declaradamente sido bem-sucedidas em encorajar números crescentes de viciados a se submeter a tratamento.


Em Março de 2008, a UNODC e a OMS publicaram um documento conjunto intitulado “Princípios do Tratamento da Dependência de Drogas.” Embora denominado um “documento de discussão,” o documento claramente ressalta a posição conjunta de ambas as organizações sobre questões a cerca do tratamento do vício em drogas e adota um posição intermediária sobre a questão. O documento ressalta que um dos principais princípios do tratamento deve ser “os direitos humanos e a dignidade do paciente” e afirma que os serviços de tratamento de drogas estão de acordo com as obrigações dos direitos humanos e reconhecem a dignidade inerente de todos os indivíduos. Isso inclui responder ao direito de gozar do mais alto padrão de saúde alcançável e de bem-estar, e assegurar a não discriminação...[com]o qualquer outro procedimento médico, em condições gerais, o tratamento de dependência de drogas, seja psicológico ou farmacológico, não deve ser forçado aos pacientes. Apenas em situações críticas excepcionais de alto risco próprio ou para outros, o tratamento compulsório deve ser obrigatório, em condições e por períodos de tempo específicos como especificado pela lei.


Ao mesmo tempo, o documento segue para sublinhar que “[q]uando o uso e posse de drogas resulta em sanções penais impostas pelo estado, o oferecimento de tratamento como uma alternativa à prisão ou a outra sanção penal se apresenta como uma escolha para o paciente/transgressor, e embora isso implique em um grau de coerção ao tratamento, o paciente tem o direito de rejeitar o tratamento e escolher, ao invés dele, a sanção penal.” As duas organizações portanto reconhecem a abordagem dos tribunais para dependentes químicos como legítima, mesmo embora o processo, de fato, envolva forçar os viciados a se submeter a tratamento.


Claramente, a decisão de se submeter a tratamento no contexto dos tribunais para dependentes químicos não é estritamente voluntária. Considerando-se que a alternativa seriam sanções penais, incluindo a prisão em alguns casos, os transgressores certamente têm um forte incentivo a se submeter a tratamento. Por exemplo, a Lei de HIV/AIDS do Canadá argumenta que há um número de preocupações com os direitos humanos que ainda precisam ser completamente avaliadas no contexto dos tribunais para tratamento de dependentes químicos...Os tribunais para tratamento de dependentes químicos empregam o peso do sistema judicial criminal para ordenar às pessoas que usam drogas a se submeter a tratamento. O fato de que os participantes entram em tratamento sob a ameaça do encarceramento, ou se abstêm das drogas com o intuito de evitar sanções, tem sérias implicações para o direito à integridade do corpo, o direito à privacidade e o direito à igualdade.


Entretanto, é apresentado que nem todo nível de involuntariedade nessa área é uma violação aos direitos individuais. A sociedade tem um forte interesse em assegurar que as pessoas que são viciadas em drogas se submetam a tratamento para a sua condição e, esperançosamente, superem o seu vício. Mesmo em nível individual, certamente se poderia sustentar o argumento de que assegurar que uma pessoa se submeta a tratamento para vício em drogas, mesmo com um nível de coerção, seria a forma mais eficiente de garantir que ela seja capaz de alcançar o mais alto padrão de saúde possível. Excluir completamente a possibilidade de qualquer nível de coerção seria, em muito casos, excluir a possibilidade de que o viciado possa superar o seu vício.


A realidade do vício em drogas é que ele destrói—ou pelo menos suspende—o livre arbítrio do viciado. Ainda que se leve em consideração os variantes graus individuais de vício, a o viciado se encontra em uma situação em que está, até certo ponto, consistentemente sob a influência das drogas. Não se pode fingir que a “decisão” de não se submeter ao tratamento é inteiramente livre. A situação é fundamentalmente diferente da de que se encontra o indivíduo que, por razões religiosas, escolhe não se submeter a um tratamento específico para uma doença fatal. Decisões tomadas sob a influência das drogas não são decisões de livre arbítrio, e basear um argumento na premissa de que isso é assim é se aproximar perigosamente de argumentar que há um direito ao abuso de drogas.


É claro, isso não é afirmar que todas as pessoas que abusam de drogas perdem a sua capacidade de tomar decisões racionais. A questão de se o consentimento da parte do viciado é um pré-requisito necessário para que o tratamento do vício em drogas seja eficiente é uma que continua sendo um assunto de debate. Pelo menos algum grau de motivação é desejável, mesmo porque, como uma questão prática, ela geralmente leva a melhores resultados.Entretanto, muito tem a ver com as circunstâncias específicas individuais, e a questão desafia generalizações de qualquer natureza. Declarações gerais de que o tratamento obrigatório é uma violação aos direitos humanos do viciado não são nem úteis nem prática e, no final das contas, não são baseadas na realidade do vício em drogas.


A redução de danos certamente tem um papel importante a desempenhar, mas um tanto como uma medida “substituta” até que o viciado se submeta a tratamento e, esperançosamente, supere o seu vício—não como um fim em si. Muitos parecem ter perdido essa visão, fomentando uma abordagem resumida sucintamente em um documento emitido pelo Instituto Transnacional: “um mundo sem drogas nunca existirá. A ideologia da “tolerância zero” precisa ser substituída pelo princípio da redução de danos, que oferece uma abordagem mais pragmática, favorecendo políticas capazes de reduzir os danos relacionados às drogas tanto quanto possível, seja para o consumidor ou para a sociedade em geral.” Indaga-se como esse argumento se desenvolveria na área dos direitos humanos. Enquanto pode-se discutir que um mundo sem violações aos direitos humanos nunca existirá, isso, certamente, não é desculpa para descartar o ideal e continuar a lutar por essa meta. O mesmo deve se aplicar ao controle de drogas.
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* Saul Takahashi trabalhou até Março de 2009 no Escritório das Nações Unidas Contra Drogas e Crimes como Especialista de Controle de Drogas na Seção de Avaliação de Convenções da Secretaria do Painel Internacional de Controle de Narcóticos. Entretanto, ele começou sua carreira trabalhando para a Anistia Internacional no campo de refugiados, e tem sempre se mantido fundamentalmente um advogado pelos direitos humanos. Takahashi tem um LL.M. em Direito Internacional dos Direitos Humanos pela Universidade de Essex, e tem lecionado questões de segurança humana na Pós-Graduação da Universidade de Tóquio. Ele está atualmente conduzindo pesquisas visando um Ph.D., comparando a eficiência dos corpos de tratados nos campos dos direitos humanos e controle de drogas.


As opiniões expressas neste artigo são exclusivamente do autor, e não necessariamente representam a visão do Painel Internacional de Controle de Narcóticos, do Escritório das Nações Unidas Contra Drogas e Crimes, ou de qualquer organização ou órgão dos Estados Unidos.


Revista Trimestral de Direitos Humanos 31 (2009) 748-776 © 2009 de The Johns Hopkins University Press
REVISTA TRIMESTRAL DE DIREITOS HUMANOS - Projeto MUSE



Pesquisa de Hoje. Inspiração de Amanhã


Saul Takahashi*

"O problema da droga nunca foi tão grave em Portugal"

Diário de Aveiro




Manoel Pinto-Coelho defende que "facilitar o acesso à droga não é o melhor caminho para a redução do consumo"


(Presidente da Associação para um Portugal livre de Drogas desde 2004)


Diario_de_Aveiro_-__APLD_-_11.08.11.pdf


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